12.11.17

Ensaio sobre a Velhice

Os velhos não têm medos. A morte está próxima, por isso dizem tudo o que pensam enquanto podem. Não olham a meios, pensam numa coisa, dizem essa mesma coisa, e o resto é connosco. E isso merece o meu respeito. Adoro velhos, incluindo a palavra "velhos" que irrita mais os novos que os próprios velhos.


Nunca fui uma pessoa muito afectuosa. Não sou muito dado a beijos e abraços (fora da intimidade). Prefiro causar o efeito desses mesmos afectos com as palavras. Qualquer um faz rir recorrendo às cócegas, poucos o fazem usando palavras. O mesmo acontece com o meu avô, no que toca a chatear. E devo dizer que, a cada dia que passa, fica mais velho e, consequentemente, mais forte na arte de chatear.

Recordo com alegria o dia em que o meu avô abriu a porta agarrado à maçaneta (da porta, seus porcos) e trocou algumas palavras com a minha mãe. Ora, terminada a conversa, um indivíduo normal despedir-se-ia e fecharia a porta. Já o meu avô, dotado de uma velhice especial, larga a maçaneta (da porta!), roda 180 graus e, enquanto manca pela saída, grita um grandioso "Fechai a porta".

O leitor repare como o meu avô se borrifa na porta e concentra todas as suas forças na sua rotação de 180 graus. "Fechai a porta"! Borrifou-se completamente. O que até faz sentido. Ele está de saída. Quereis a porta fechada, fechai-a vocês, que eu cá já me vejo aflito das pernas, costas e tudo o que tenha ossos a suportar.

Quando eu fiquei uma vez sentado ao lado de um miúdo (tosse, BURRO!) que atirava restos de pipocas para o centro da sala de cinema, fiquei com vontade de lhe enfiar chumbo nos miolos, se é que ele os tinha. O dinheiro que ele gastou no bilhete de cinema e nas pipocas, que o gastasse na feira popular onde atirar algo contra alguém dá direito a peluche. E depois ainda disfarçava, como se estivesse uma professora lá na frente a ver quem é o mongolóide que está a atirar borrachinhas para o quadro.

Enfim, as vidas de algumas pessoas são como as aulas de matemática. A melhor parte é quando acabam. Já a do meu avô, espero que perdure. O tipo de chatice que ele pratica consiste num manuseamento das palavras que não magoa ninguém. Merece um aplauso. Todos os velhos merecem. Os velhos não têm medos. A morte está próxima, por isso dizem tudo o que pensam enquanto podem. Não olham a meios, pensam numa coisa, dizem essa mesma coisa, e o resto é connosco. E isso merece o meu respeito. Adoro velhos, incluindo a palavra "velhos" que irrita mais os novos que os próprios velhos.

Talvez goste deles cada vez mais porque estou cada vez mais velho. Não me consigo excitar com "apps" da mesma maneira que a malta da Web Summit e ainda tenho de recorrer à internet quando alguém me diz que os meus textos são "alta drena". Drena? Eu nunca escrevi sobre escoamentos de águas em excesso ou retirada de líquidos. Mas sei que sou novo quando o meu avô tira uma sesta de dia, eu fecho todas as janelas, altero a hora dos relógios, ele acorda, e eu convence-o de que já é noite e perdeu um dia da sua vida (que já vai longa) a dormir. Sou um neto de sonho. Um dia disfarço-me de morte e prego-lhe uma partida ainda maior. O problema é se ele dá meia volta e grita "Fecha a porta!" pois aparentemente está-se a borrifar quando é que ela chega, e isso sim, é admirável.